segunda-feira, 23 de março de 2009

Papa homenageou vítimas que Angola tardou a admitir

De tanto lidar com a morte e tão pouco com os jornalistas, a funcionária de bata branca do Hospital Josina Machel parou de empurrar a maca onde jazia uma das vítimas do encontro de anteontem com o Papa no Estádio dos Coqueiros, em Luanda, e sorriu ao ver os repórteres à entrada do elevador metalizado.

Recuperou a compostura num ápice e continuou a deslizar a maca coberta com um lençol banco onde sobressaía uma coroa de flores vermelhas e brancas. Atrás, um homem vestido de verde-água, máscara da mesma cor e luvas cirúrgicas, empurrava o cadáver da outra vítima dos violentos atropelos à entrada do recinto onde Bento XVI se reuniu com a juventude angolana. Também coberta de branco, com flores azuis e brancas. Não se pense que as flores são uma boa prática do principal hospital da capital de Angola.

As coroas foram compradas depois de o Papa ter referido a morte das jovens, no encontro de ontem à tarde, na esplanada da Cimangola (ver caixa). Pouco depois, o secretário de Estado do Vaticano, cardeal Tarcisio Bertone (a segunda figura da Igreja) e o ministro angolano das Relações Exteriores, Assunção dos Anjos, passavam pelo "Josina Machel" para reconfortar a família de uma das vítimas e visitar os dois feridos dos mesmos incidentes ainda internados.

Até ontem, a existência das vítimas tinha sido prudentemente ocultada nos discursos oficiais e, consequentemente, omitidas dos intermináveis blocos noticiosos que a governamentalizada TPA - Televisão Pública de Angola - dedica à visita do Sumo Pontífice ao país. Mas o caso saltou para a imprensa internacional e nem o poder em Luanda nem sequer o Vaticano puderam mais ignorá-lo.

Um dia depois da tragédia, vieram as "homenagens", como lhe chamou Assunção dos Anjos, às vítimas. Uma das quais, referiu o cardeal Bertone, até "era catequista na igreja de São Pedro", facto que o JN não conseguiu confirmar naquela paróquia do bairro do Prenda.

As duas raparigas perderam a vida em conjunto, mas tiveram sortes diferentes depois da morte. Celina Kiala, 22 anos, trazia consigo documentos pessoais e um telemóvel, quando chegou à morgue do hospital.

Da outra vítima nada se sabe. "Ninguém reclamou o cadáver, nem sequer sabemos se tem família", disse, ao JN, o coordenador do projecto Luacute - Atendimento Humanizado, Jorge Manuel, em curso naquela unidade de saúde. E porque, sobretudo em Luanda, é preciso ter sorte até na morte, os dois corpos foram retirados dos decrépitos frigoríficos da morgue hospitalar e transferidos para a "sala de trânsito" onde, segundo Manuel, "os frigoríficos são de melhor qualidade", o que significa que o cadáver anónimo ainda terá 30 dias para ser reclamado.

Depois desse período, será enterrado numa vala comum.


in Jornal de Notícias


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